A Ética no Discurso Democrático

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A Ética no Discurso Democrático

A ÉTICA NO DISCURSO DEMOCRÁTICO

DA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

 

 

 

Muito tem se falado nos últimos anos, de como a humanidade evoluiu no sentido de estar mais consciente sobre as questões relativas aos direitos do homem, a preocupação com o bem estar e a felicidade, de propiciar um mínimo para existência.

 

Aliás, esse é o discurso atual dos chefes de Estado, que “lutam” para dar condições melhores ao seu povo. Cada povo tem sua organização política. Nos dias de hoje é comum que este, o povo, escolha a forma de governo, porém, assim como antigamente, há populações que vivem sob a rege autoritária de algum líder, o povo não escolhe, simplesmente são impostas. Essas sociedades, presas a grilhões sociais, acreditam que seus lideres são a única saída, uma única salvação. Declarando aos demais Estados como democráticos, os lideres desses Estados escondem-se por detrás de uma cortina de um sistema de organização estatal, dizendo-se livres e comprometidos com o bem comum dos seus representados.

 

Aristóteles já previa a degradação da democracia. Alias, viveu em uma. Ele a chamava de demagogia e em suas palavras era a democracia desvirtuada, declarada como governo do povo, que era conduzido por estes, mas na realidade, seguia a ideologia de um ou de poucos, com suas paixões e interesses, utilizando do poder das palavras para convencer o povo de suas ações benevolentes, criando a ilusão de um futuro melhor e mais prospero[1].

 

Vemos que já no inicio do sistema democrático, lá no seio heleno, havia uma manipulação da verdade e do sistema. Os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles  vivenciaram exatamente esta experiência. Foram testemunhas da democracia ateniense, presenciando o termo daquela era, podendo se contrapuser a demagogia que foi instaurada pela desvirtuação da democracia.

 

Os lideres daquela época usavam os anseios do povo, suas vontades e aspirações para convencer-lhes de que podiam alcançar. Bastavam metas e sacrifícios coletivos. Instigavam paixões entre os cidadãos, criando ilusões e ideologias, condenando o povo a uma era de clausura, disfarçada em promessas e recompensas.

 

A democracia nasceu entre o povo[2], para que este pudesse tomar o poder e ter condições de combater os sistemas de governo que até então demonstravam ineficiência. O governo dos melhores, a aristocracia facilmente transformava-se em uma oligarquia, que era o governo de poucos. A monarquia, governo de um só, produzia à tirania visto a concentração do poder em uma única figura[3]. A democracia ateniense surge com uma formula “mágica” pelas mãos de Clístenes[4], considerado fundador daquele sistema, que atrevemos a sintetizar em uma frase única como “o governo de nós mesmos”.

 

O povo enfim era detentor do poder. Participava diretamente das questões centrais do Estado. Resolvia sobre guerras, sobre política, economia entre tantos outros assuntos. Eram reunidos em um só local, para que a assembléia de cidadãos chamada de ecclesia fosse realizada e o povo decidisse seu próprio futuro. A democracia ateniense era formada por diversos institutos com fim de promover o governo do povo por ele mesmo. Além da assembléia de cidadãos, havia a presença do tribunal popular, conhecido como os heliastas, que era composto por 6 mil cidadãos escolhidos por meio de sorteio. Era dividido em 10 cortes.

 

Em uma posição um pouco inferior a assembléia dos cidadãos, havia a presença do conselho, chamado de boulé composto de 500 cidadãos, também escolhidos por sorteios, mas assim como os heliastas, passavam por um exame chamado dokimasia, que era a verificação da dignidade desses cidadãos escolhidos para o cargo. Tal exame consistia não somente na conduta publica, mas também na religiosa, de guerra  e ainda privada.

 

O papel desse conselho era preparar as reuniões das assembléias, elaborando projetos ou dando pareceres sobre estes, fiscalizando magistrados, organizando os trabalhos. Na esfera da justiça, além do tribunal popular de 6 mil cidadãos, havia numerosas magistraturas, com funções limitadas (especializada) e também temporárias, que geralmente era de 1 ano ou às vezes meses. Esses magistrados eram escolhidos também por sorteios e assim como os heliastas e o boulé eram sujeitos a dokimasia. Dentre as magistraturas, havia as especiais, que não eram designadas por sorteio e sim por eleição, pois exigiam competências técnicas. Esses poderiam ser reeleitos, diferentes dos outros que era proibido à recondução. As magistraturas especiais se fundavam na noção de que uns são melhores e conhecem mais do que os outros, necessitando de uma estabilidade no cargo, prevenindo, porém qualquer desvio através de uma eleição entre aqueles competentes a exercer a função, como por exemplo, um conselheiro de guerra.

 

Apesar de todos esses instrumentos, aquela democracia foi consolidada em alicerces demagogos. Para eles, o povo deveria governar. O cidadão era o detentor do poder e o único titular. Prestigiavam a igualdade de condições, como no sorteio, para que todos tivessem as mesmas chances, mas o termo cidadão era restrito. A demagogia começava justamente no principio, no fundamento democrático, poucos eram considerados cidadãos. Um exemplo disso eram as mulheres, que foram excluídas de qualquer possibilidade de decisão. Outros como escravos e forasteiros também não tinham acesso. Alias, para ser considerado cidadão de ateniense tinha que se cumprir um requisito básico, ser filho de pai ateniense ou filho de mãe ateniense filha de pai ateniense[5].

 

O governo do povo não era deste e sim de uma parcela dele. A democracia em seu nascimento já não exprimia o seu sentido. Ao decorrer das décadas e séculos o cidadão ateniense viu-se cercado de obrigações estatais, nas quais, os ricos, se não as cumprissem sofreriam sanções do Estado e os pobres, quando exercitavam, ganhavam recompensas[6].

 

O sistema já naquela oportunidade apresentava fragilidade, seja pela falta de interesse do povo, seja pela restrição que estes sofriam, ou ainda, pelo risco de transformar-se em uma demagogia, deixando o povo a mercê de uma figura central, que usava os sonhos e vontades do povo para enganar ele mesmo, com promessas e falsas conquistas.

 

É neste ponto exato que a democracia tem seu ponto forte, ou seja, a possibilidade que é dada a uma pessoa de comandar a vontade de um grupo de pessoas e executá-las. A responsabilidade é imensurável, devendo o representante ser revestido não só de ética, mas também de moral.

 

A ética de Aristóteles está voltada para o bem, e tem como fim a felicidade dos indivíduos da  polis[7]. Para isso, deve-se ter em mente que o bem e a felicidade concernem aos cidadãos, e o bem do Estado e o bem do indivíduo provêm da mesma natureza, mesmo o bem do Estado seja mais divino do que o individual. Sua ética é a do bom senso, fundada nos juízos do homem bom e virtuoso.

 

A ética diferencia-se da moral, pois, enquanto esta se fundamenta na obediência a normas, tabus, costumes ou mandamentos culturais, hierárquicos ou religiosos recebidos, a ética, ao contrário, busca fundamentar o bom modo de viver pelo pensamento humano.[8]

 

Com esta distinção, vê-se que a ética está voltada à ação voluntária e moral do indivíduo, enquanto a moral se preocupa com a vinculação do mesmo com a comunidade. A ética aristotélica mostra-se como sendo uma ligação estreita entre a ação moral do indivíduo e a sua vivência na polis. Seus atos refletem dentro da comunidade como um todo e aquilo que o indivíduo faz de bem ou de mal vai intervir diretamente na convivência da sociedade onde ele está inserido. Assim, a felicidade de todos depende de cada um e, a felicidade de cada indivíduo, depende de todos[9]

 

O pressuposto básico da Ética de Sócrates era que bastava saber o que é bondade para que se seja bom. Um governante até podia agir dentro da moral, ou seja, aos olhos dos cidadãos ele tinha todos os atributos que a sociedade esperava, mas o que um governante não poderia deixar de ter era exatamente ética em sua conduta, ou seja, ser bom.

 

É neste prisma que enxergamos as decadentes experiências de Atenas com a democracia. Eles, em primeiro lugar, sentiram os efeitos da degradação da democracia. Sentiram o gosto amargo das conseqüências do  mal uso da democracia e o que isso podia causar ao povo, ao Estado.

 

A principal vontade na criação do Estado democrático é antes de tudo, o bem comum, a felicidade suprema, chamada por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco de eudaimonia.

 

Porém, o que vemos na democracia e em outros sistemas como na aristocracia, monarquia, é que a perseguição da felicidade não consegue ser efetivamente coletiva, e que em uma primeira oportunidade, o poder pode corromper o homem, pode seduzir o cidadão, que buscará o prazer individual, abandonando o cerne do propósito por ele assumido.

 

Em tempos remotos, esse desvio de poder, essa degradação da vontade do povo, essa falta de ética na representação da vontade popular, podia ser escondida e camuflada, mas hoje isso já não é mais possível, pelo menos não como antes, às escuras e anonimamente.

 

Estamos na era da sociedade da informação e como pressuposto básico a informação circula livremente, constantemente. Circula até mesmo quando não queremos que ela circule. Ela se transformou em um poder. Um poder caro, valioso. A informação tem o poder de transformar as coisas. Ela pode construir impérios em pouco tempo e tem o mesmo poder na direção contrária, de destruir.

 

Vivemos em uma sociedade integrada, midiática, que clama cada vez mais por aderência de novas pessoas a ela, aderência essa que irá transformar a vida desses humanos. Uma sociedade que promete libertá-los dos pensamentos ignorantes, que provocarão revoluções internas desses indivíduos, fazendo com que eles deixem o anonimato para tornarem-se conhecidos e conscientes de sua existência.

 

O grande retardo da sociedade é justamente este, ou seja, grande parte da humanidade não tem noção de sua existência. Não falamos do verbo – existir, ser real – mas sim de existência coletiva, como um só povo, uma só raça, um só tipo de humano, que se diferencia da classe animal justamente por ter o poder de absorver, entender, repassar e melhorar uma informação.

 

Saímos de duas grandes guerras do século passado com a noção de que, quem detém a informação, detém o poder.

 

Hoje, a informação modifica a vida daqueles que a experimentam. Um novo mundo se abre a milhões de pessoas. Possibilidades foram criadas. Cada vez mais, temos mais e mais intelectos humanos em contato com informações, com conhecimentos. O que antes era privilegio de uma parcela mínima da população mundial, hoje foi popularizado pela rede mundial de computadores.

 

Uma rede tão poderosa que nem mesmo as pessoas que a utilizam têm noção do seu poder. Chamam isso de democratização da informação. Essa “democratização” libertou mentes no mundo todo, fornecendo condições para que estes tivessem oportunidade de obter informações e ter opiniões sobre elas. Hoje, não dá mais para esconder fatos relevantes de uma sociedade.

 

 O que antes era viável, hoje pode não ser pelo simples fato de que cada vez mais uma parcela crescente da população mundial tem condições de concordar ou não com uma idéia apresentada.

 

Antes, o povo era conduzido e hoje pleiteia a sua condução. Tal revolução começou longe, ainda nos séculos XVI e XVII, com o nascimento do iluminismo e a era da luz em confronto ao sistema degradante daquela época.

 

Montesquieu e Rousseau[10] influenciaram na criação do Estado moderno. Em algum momento nas revoluções francesas e americanas o conceito de que o povo era o verdadeiro detentor do poder foi introduzido, ressuscitando o modelo democrático da Grécia antiga, onde o povo se governa – demo (povo) kracia (governo).

 

O mundo moderno foi tomado por um romantismo justificado, de liberdade, fraternidade e felicidade, sendo que esta ultima tão perseguida por Aristóteles. Giramos e voltamos ao inicio. Demos valores a institutos antes desprezados na era medieval. Passamos a perseguir objetivos nobres, para o bem geral da sociedade.

 

O Estado moderno tornou-se soberano e sua força e vontade dirigida pela vontade popular e para beneficio desta, assim como no passado. Chefes de Estados preocupados com o bem estar de outras nações mobilizam milhões de pessoas com intenção de ajudar na recuperação de grandes catástrofes naturais, crises econômicas e atentados ao sistema democrático.

 

Guerras foram travadas em nome da boa democracia. Boa democracia? Aquela que mantém a ordem das coisas, que se tornou boa por manter o poder nas mãos certas. Do povo? Não, dos governantes.

 

Usam todo o seu contingente em nome de ideologias, plantadas na mente dos cidadãos. Utilizam o próprio sistema para isso, ou seja, a informação, a mídia, que é a comercialização da informação dirigida.

 

Somos testemunhas de uma nova degradação da democracia, de uma nova demagogia mundial. Enquanto alguns utilizam o sistema para alimentar o poder que já detém, outros utilizam a democracia para justificar guerras, genocídios, perseguições internacionais, fome.

 

O discurso democrático hoje é amplamente utilizado, porém poucos são coerentes, poucos são verdadeiros, poucos realmente funcionam. Fundamos a moderna demagogia, tão repudiada por Aristóteles.

 

Ética. Falta de ética. A essência na identificação do bom no homem hoje é facilmente notada na sociedade da informação. Lideres políticos não conseguem esconder do mundo suas verdadeiras intenções. Apesar disso, muitos chefes de estado utilizam a democracia como fachada para um regime autoritário.

 

Qual a ética nisso? Como podemos aceitar tal situação? Seria ético intervir em casos extremos? Questões que não tem respostas fáceis. O que para muitos é imoral, para outros é a única alternativa, pelo menos acreditam nisso.

 

Os verdadeiros bens para o homem são os espirituais, que consistem na virtude da alma intelectiva. Para Aristóteles, a virtude humana não está meramente na virtude do corpo, mas na da alma, e a felicidade na atividade própria da alma que, conseqüentemente, se transporta para a busca do bem da polis. Os bens do homem consistem naqueles espirituais de sua alma, a virtude da alma. A felicidade consiste nesta atividade, ou seja, o homem virtuoso é que consegue transpor os seus valores psíquicos para o campo social.

 

Quando um homem deixa à ética e utiliza-se de um discurso, pode obter praticamente qualquer coisa. Quando esse discurso está ligado a uma democracia, ou seja, um líder que não usa o bem para reger suas ambições, certamente teremos a figura de um demagogo, alguém que utiliza as paixões de um povo para beneficiar a si próprio.

 

O discurso democrático na sociedade da informação pode ser facilmente identificado. Podemos utilizar os meios de comunicação para detectar a intenção real de um líder político. Podemos saber se sua conduta é moral e ética, mas, devido à própria estrutura do sistema mundial de organização estatal, interferir nesse processo pode ser interpretado como falta de ética.

 

Se interpretarmos o significado de ética conforme Aristóteles, ou seja, utilizar o bom senso – espontaneamente, talvez em alguns casos, a falta dela, da ética, seja necessária. Com tal falta de ética, adotaríamos uma conduta moral positiva, evitando a degradação humana com o discurso demagogo de algum líder antiético.

 

 

 REFERÊNCIAS

 

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São

Paulo: Abril Cultural, 1984.

 

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

 

BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001.

 

Gilles Deleuze, Espinosa. Filosofia Prática. Editora Escuta.

 

MOSSÉ,Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. Port., Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1979.

 

SARTORI, Giovanni. A Teoria da representação no Estado representativo moderno. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1962.

 

SOARES,  Marcos Antonio Striquer. O plebiscito, o referendo e o exercício do poder. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998.

 



[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 6.

 

[2] SOARES,  Marcos Antonio Striquer. O plebiscito, o referendo e o exercício do poder. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 17.

 

[3] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 7.

[4] Cf. MOSSÉ,Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. Port., Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1979, p. 29.

[5] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 5.

 

[6] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia no limiar do século XXI. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 4.

 

[7]  “[...]  Pólis se constituía como uma unidade política e territorial, sobretudo através do vínculo que seus cidadãos mantinham com ela por lealdade, identidade cultural e origem. É na  pólis que se dá a experiência da democracia, caracterizada pela igualdade dos cidadãos perante a lei e pela participação destes na decisão política. Aristóteles, na constituição de Atenas examina essa forma de organização política” In. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[8] Gilles Deleuze, Espinosa. Filosofia Prática. Editora Escuta, p.23-35.

[9] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São

Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 49. 

[10] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 147.